Meu caro Cri, assombrações existem, acredite em mim. Elas estão soltas por aí a vagar neste mundo de meu Deus, sempre prontas para nos tomar de assalto na primeira oportunidade, mais atentas a nós do que nós a elas, que vivemos neste planeta imersos em nós mesmos, alheios aos perigos que nos cercam.
Engraçado como se dá nossa relação com elas. Tudo parece se resumir a um jogo de fé, jogado de forma desigual. Explico de forma sucinta: é que elas acreditam em nós, embora nós mesmos não acreditemos necessariamente nelas, na verdade, até as negamos diligentemente na maioria das vezes. E é justamente dai, desta desigualdade de percepções que elas se alimentam, crescem, põem seus ovos e se reproduzem, até finalmente se instalarem em nosso quotidiano. E então quando nos damos conta do ocorrido, o jogo já está irremediavelmente perdido. Somos surpreendidos e encaçapados. E aí é tarde meu amigo, porque de algum modo elas já encontraram uma maneira de perpetuar sua espécie em nossas existências, nos reduzindo a meros hospedeiros.
No mundo concreto, estas almas penadas se apresentam em carne e osso mesmo, embora comportem variações. Podem ser fantasmas, vampiros, monstros ou Frankensteins. Podem até mesmo assumir outras formas sombrias, de acordo com a situação e demanda. Outro dia tropecei numa delas, e foi aí meu caro que seu bom e velho nome veio à tona, te resgatando de seu auto consentido anonimato.
Tudo começou assim, num imprevisto. Encontrei-me ao acaso com um velho amigo ainda dos tempos do terceiro científico, daqueles amigos atemporais, que a gente carrega pra sempre dentro do peito, mesmo que o tempo e a distancia digam não, como diria a canção. Conversa vai conversa vem, trocamos o telefone de um amigo em comum, que nos passou o telefone de cicrano, que por sua vez nos conectou a beltrano, e assim sucessivamente e quando percebemos, tínhamos formado um grupo de WhatsApp com mais de trinta pessoas que nos remetiam aos idos de 1979. O próximo passo, claro, seria reunir toda esta gente em torno de uma mesa de bar e celebrar a vida, por a conversa em dia.
E assim foi. Confesso a você que eu me encontrava feliz pra burro no meio daquela balburdia toda. Trinta pessoas felizes, ansiosas, desesperadamente falando quase todas ao mesmo tempo, o barulho dos copos, das garrafas de cerveja sendo abertas e generosamente sendo passadas de mão em mão para aplacar a boa e velha sede de cada um, o trafego caótico dos garçons, o burburinho do bar, e uma improvável confraternização em curso resgatada do fundo da poeira de tantos anos, assim como eram improváveis as trajetórias atuais de cada um de nós a julgar pelas folhas corridas pregressas individuais. Fora isto, as velhas e previsíveis brincadeiras de sempre, os sorrisos, os mesmos casos com diferentes versões e roupagens, as novas formas como quase todos, salvo raras exceções se apresentavam: gordos, de óculos e cabeça branca, carecas, distintos pais de família. O tempo impusera a cada um de nós maiores ou menores marcas que de imediato nos tornaram um pouco mais ou menos irreconhecíveis uns para os outros e portanto, motivo de piada pronta. No mais, aquela velha centelha que nos unira a tanto tempo atrás estava de volta e cintilava forte. Um sangue adolescente voltara a jorrar novamente em minhas veias. Eu transbordava de bons fluidos, interagia feliz com meus amigos, ouvia um com atenção, ria, brincava com outro, largava um comentário aqui, ouvia outro acolá. Cercado de tanta gente querida, eu exalava felicidade.
Então aconteceu: sem que eu me desse conta, surgindo do nada, uma destas besta fera as quais me referi, e que nada tinha a ver com nosso grupo, se materializou bem na minha frente, atraída talvez pela minha boa energia que ela farejara no ar, seu alimento predileto. Babando, com as pupilas dilatadas e com garras e caninos de fora apontados para mim ela me interpelou num tom tenebroso:
_ “Eduardo Ude?"
Olhei de rabo de olho. Todos os alarmes dentro de mim imediatamente dispararam. Me arrepiei todo. Numa fração de segundos, meu subconsciente identificara um timbre de voz que a muito eu havia enterrado no mais recôndito canto de minha memória com dezenas e dezenas de pás de cal. Ignorando meu desconforto, mais uma vez o tal ser se dirigiu a mim, anunciando o tormento estava prestes a começar:
_ “Tá lembrado de mim não?"
Tava, pior que tava, daí meu pânico. Ao olhar em volta, talvez em busca de socorro, me dei conta de que eu me sentara na cabeceira de nossa mesa próximo a uma parede. Ao meu lado, a única cadeira vazia ainda livre, não me permitia evadir dali de forma sutil sem ser deselegante. Eu era um pato, um alvo perfeito. Ele claro, o tal ser agora identificado como um vampiro, foi logo tratando de se sentar ao meu lado sem maiores cerimônias. Gelado, tratei de me proteger, evocando todas as forças do Bem, o Criador, enquanto corria os olhos ao redor procurando por uma estaca, um crucifixo, ou coisa do tipo. De forma polida, porém educada respondi:
_ “Desculpe??..."
_ “Pô Ude, sou eu!!!!"
Deus, eu me encontrava enquadrado na alça de mira da mais temível das criaturas, um vampiro de alto coturno, de capa e tudo mais, carente, cheirando a cerveja, mais maligno que o próprio Bella Lugosi, pálido como Michel Temer, o mais perigoso tipo de todas as variações possíveis desta espécie, daqueles que te atacam na calada da noite em nome de uma suposta grande intimidade que ele acha que possui com você e que é obviamente, nas contas dele, recíproca. Só que não... O que se sucedeu então foi cruel, duro de aturar. Minhas reiteradas negativas de conhecê-lo na verdade só complicavam mais ainda minha situação. Ele resolveu se apresentar em detalhes, mas em detalhes mesmo, na expectativa de que eu me lembrasse dele, como se isto fosse necessário. Falou de coisas das quais não perguntei, disparou perguntas que eram de pronto respondidas por ele próprio sem que ele perdesse o fôlego. Falou do seu número na caderneta de chamada de nossa classe, falou do meu próprio número, do antigo número do telefone lá de casa que eu sequer lembrava, resgatou episódios que eu seletiva e convenientemente deletara para todo o sempre de minha vida. É claro que eu sabia de quem se tratava, afinal existem tipos inesquecíveis que a gente faz questão de esquecer, não é mesmo? De tempos em tempos, citava alguém de forma depreciativa na expectativa de minha concordância, observando minha reação. Bem que eu tentei me evadir, mostrar desinteresse, tédio, puxar conversa com alguém ao lado, mas ele me bloqueava. Engraçado os pensamentos que ocorrem nestas horas, as idéias que passam na cabeça da gente:
_"Vou tentar sair fora dizer que vou dar uma mijada ou coisa do tipo e depois arranjo um outro lugar na mesa pra mim, mais protegido, bem longe desta criatura", pensei. Depois pensei melhor:
"_Melhor não, vai que ele resolve vir comigo, melhor permanecer no grupo", me lembrando de como os peixes se utilizam de seus cardumes para se protegerem e de como um vampiro desta estirpe pode ser inconveniente e grudento. Apesar de meus esforços, ele continuava a me metralhar com perguntas se achando super agradável e neste vai e vem meu caro, mencionou sua ilustre pessoa. Dando seqüência no processo de me enlouquecer, engrenou a pergunta da noite:
_"Lembra do Clovis??"
Eu já estava tão desesperado que respondi qualquer coisa, disse que sim, concordei na esperança de ter um pouco de paz, um tempinho pra respirar. Infeliz idéia, porque agora eu dera a ele o mote necessário que ele tanto esperava, um link no qual ele se agarraria de unhas e dentes para construir uma narrativa de proximidade entre nós que na verdade nunca existira.
_"Sabe onde ele está? Me disseram que ele não mora mais aqui".
_ "Não sei, acho que se mudou pra Manaus, não tava agüentando mais o calor de BH...", respondi reticente, com maldosa ironia. O vampiro não se tocou.
_ “É mesmo? Me conta tudo!" Foi como se eu tivesse oferecido minha jugular pra ele. O vampiro ficou excitado. Em questão de segundos, eu, você e ele havíamos nos tornamos Os Três Mosqueteiros, os melhores amigos do nosso tempo de colégio, os mais incríveis e mais espertos meninos do Universo. Mais uma saraivada de perguntas acompanhadas das já repetidas respostas se seguiu, desta vez acrescidas de elogios a sua pessoa, numa óbvia tentativa de me agradar. Definitivamente o Clovis que eu conhecia não cabia nos termos que ali eram colocados, uma bajulação gratuita que estava bastante longe do entendimento que eu tinha de você.
Na seqüência, e sempre na linha de querer estabelecer uma proximidade que definitivamente não existia, ele começou a me pentelhar para dividir uma pizza comigo. Sem que eu pedisse, concordasse, dissesse que sim ou que não, pediu e leu todo o cardápio do restaurante em voz alta para mim e então começou a fazer considerações sobre cada um dos sabores e combinações possíveis, preços, em mais uma tentativa de parecer descolado e me agradar. Depois, para meu desespero, a praticamente cada segundo me sacudia pelo ombro repetidas vezes me dizendo que gostava de mim pra cacete, me expondo ao seu pavoroso bafo, daqueles que só as criaturas das trevas possuem. Deu vontade de perguntar se ele topava meiar uma pizza de alho, só pra depois ve-lo no chão se estrebuchando envenenado que nem uma barata com over dose de Detefon, mas depois deixei pra lá, conclui que ele não tinha a menor condição de entender a real intenção de minha pergunta. Vampiros de modo geral são burros, principalmente os mais bêbados...
Então o Criador interveio. Alguém se deu conta do massacre que eu estava sofrendo e providencialmente me chamou no canto com um pretexto qualquer. Deixei o vampiro falando sozinho e corri em direção à minha liberdade. "Quem tem amigos, tem tudo!", pensei. Agradeci profundamente ao meu salvador e pedi uma parcial da conta, pagando a parte que me cabia. Me despedi de todos discretamente. Ainda tive tempo para correr os olhos no bar e localizar meu amigo da Transilvânia, de modo a não sofrer nenhum tipo de surpresa, interceptação, um pedido de carona ou coisa do tipo. Em casa, por via das dúvidas, dormi de olho em um crucifixo de Dona Zilá!
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