terça-feira, 4 de novembro de 2025

Os leitos

Em cada existência, há dois leitos que, marcam o início e o fim da nossa jornada. São palcos sagrados onde a vida se revela em sua forma mais pura e brutal: o leito da sorte e o leito da morte. Embora pareçam opostos, um sendo a alvorada e o outro o crepúsculo, eles são, na verdade, espelhos um do outro, conectados pelo fio invisível das nossas escolhas.
O leito da sorte é o berço, o ninho, o ponto de partida, possibilidades, onde nascemos não apenas para o mundo, mas para um universo de potencialidades. Nele, a sorte não é a garantia de vitória, mas a dádiva da oportunidade. É uma página em branco onde o destino sussurra promessas, um campo fértil onde qualquer semente pode germinar. Neste leito, somos pura potência, agraciados com o tempo, a energia e a chance de construir, de amar, de errar e de aprender. É o capital inicial que a vida nos oferece, um cheque em branco assinado pelo acaso.
Do outro lado do tempo, aguarda-nos o leito da morte. Este é um leito de verdades. É o trono do juízo final, onde não há mais espaço para máscaras, desculpas ou projeções. Nele, o dinheiro, o status e as posses se desfazem como fumaça, e o que resta é a colheita nua e crua do que plantamos: o amor que se deu, as feridas que se abriram, a coragem que se teve, o perdão que se concedeu ou se negou. É o espelho final onde a alma se encara sem véus, e o único peso na balança é a autenticidade da vida vivida.
A grande revelação é que a natureza do nosso leito da morte é diretamente esculpida pelas ações que tomamos desde que deixamos o nosso leito da sorte. A vida é o trajeto entre os dois.
Viver com a consciência dessa dualidade é a maior das sabedorias. É entender que cada dia é uma oportunidade de honrar a sorte do começo, de transformar a promessa em legado. É forjar, no calor das batalhas diárias e na serenidade dos momentos de paz, um fim que seja digno do início.
O objetivo final não é temer o leito da morte, mas transformá-lo no derradeiro leito da sorte: um lugar onde, em vez de arrependimento, haja paz; onde, em vez de solidão, haja a presença indelével do amor semeado; onde, em vez de medo, haja a serena certeza de uma jornada completa.
Que o nosso último repouso seja a prova irrefutável de que a sorte, afinal, não foi um acaso no início, mas uma conquista diária até o fim.
Tão intenso e tão distante... 

sábado, 1 de novembro de 2025

Ai de mim se não fosse eu

Tem dias em que acordo e penso:
E se eu tivesse desistido no momento em que tudo desabou?
Quando olho e vejo apenas escombros de sonhos abandonados e relacionamentos dissolvidos pela incoerência?
Conheço bem esse lugar. Muito bem, na verdade.
A vida tem essa característica peculiar de me colocar em situações que parecem definitivas. Soando como um ponto final.
Mas descobri que é mais como uma vírgula mal interpretada.
Agora, aos 63 anos, olho para um espelho que reflete alguém que não reconheço.
Empregos perdidos, negócios falidos, relacionamentos destruídos.
O envelhecimento dos queridos.
O fracasso não é um evento, é um processo.
Passei muito tempo construindo uma narrativa sobre como eu não sou suficiente.
Para os meus pais, para os meus queridos e amores; para mim mesmo.
Quando você acredita nisso por tempo demais, o universo parece concordar com você.
As oportunidades batem na porta e não são notadas. As pessoas que oferecem ajuda são rejeitadas.
Construo muros ao meu redor enquanto reclamo da solidão.
A vida ensina e procuro aprender, todos os meus fracassos me levam à seguinte conclusão: sou indestrutível.
Não no sentido de invencível ou perfeito, mas na capacidade de resistir, de ainda estar de pé mesmo depois de cair tantas vezes e de tantas formas.
Há um livro sobre a phoenix que li num momento qualquer.
É a história do pássaro que se queima e renasce das cinzas.
Na época, achei poético demais para ser relevante, hoje, entendo que é a metáfora mais precisa que alguém poderia ter me oferecido.
O renascimento acontece porque se chegou ao ponto em que não tem nada a perder, franco atirador.
O fracasso já fez seu trabalho, deitado no chão sem ação, então descubro algo interessante: estou vivo.
Essa é a ironia do renascimento: Os anos ruins? São meu MBA particular, ensinando resiliência, aquela visceral, de alguém que já tocou o fundo e ainda assim continua respirando.
As pessoas se conectam mais com a vulnerabilidade do que com o sucesso.
Me vejo indestrutível, não é sobre não cair, mas sobre a capacidade de levantar.
E essa capacidade não é frágil ou limitada, é tão sólida quanto as piores quedas que experimentei.
No final das contas, ninguém vem me salvar. Nenhum herói, nenhum salvador.
Sou o único responsável pela minha história.
E essa responsabilidade é libertadora.
Apavorante, mas libertadora.
Eu escolhi renascer.
E hoje, quando penso pelo que tenho passado, não acredito que tudo vai ficar bem.
Acredito em algo mais honesto: sou mais forte do que imagino.
É o meu recomeço.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Eu, que sempre tive medo do escuro, de morar sozinho, hoje vivo só. A ironia dessa frase ecoa por todos os lugares da minha casa, um lugar que aprendi a chamar de lar. O silêncio, que antes me assustava, agora é a tela em branco que me aterroriza com assombrosos pensamentos e devaneios.
Nas noites em claro, choro, imaginando o desconhecido, a solidão é uma visita indesejada. O medo, uma sombra que se projeta em cada canto abandonado do meu ser. Um desafio.
Cada estalo da madeira, cada som vindo do corredor, um gatilho para a ansiedade.
A ausência de conversas no café da manhã, o eco da minha própria voz parece estranho.
Venho confrontando o silêncio do ambiente, o barulho dentro de mim, as inseguranças, os medos que eu antes conseguia abafar com a presença de mais alguém.
Aprendi a dançar sozinho, a cozinhar para um, a escolher a trilha sonora dos meus dias, a organizar meus livros não pela lógica, mas pelo coração.
O medo de chorar e ninguém ouvir, já não é medo é hábito.
Hoje, quando fecho a porta, não sinto mais o pavor do vazio.
A solidão não é ausência, mas uma única presença, a minha própria.
Talvez, a maior contradição da minha vida.

Véu que se Desfaz

Há dias em que o mundo parece suspirar mais profundamente, como se a própria atmosfera carregasse memórias invisíveis. 27 de outubro é um desses dias — quando o véu entre os mundos se torna tênue como papel de seda, e as almas dos nossos companheiros de quatro patas, retornam para nos abraçar com a ternura etérea do amor que transcende a morte.
Não é coincidência que sintamos, neste dia, uma presença familiar roçando nossas pernas, um calor inexplicável no peito, ou que nossos olhos se voltem instintivamente para aquele canto da casa onde eles costumavam descansar. As almas dos animais não conhecem fronteiras, e hoje, elas atravessam dimensões para nos lembrar que o amor verdadeiro jamais se extingue.
Lembro-me da Juliana, da Jussara, do Jacinto, com seus olhos cor de mel que pareciam guardar todos os segredos do universo. Suas patas deixaram marcas não apenas no chão, mas na textura da nossa alma. Hoje, sinto que eles caminham ao meu lado novamente, invisíveis mas inegávelmente presentes, com aquela lealdade que nem a morte conseguiu quebrar.
Posso jurar que ouço novamente aquele som suave, reconfortante, eterno, vindo de lugar nenhum e de todos os lugares ao mesmo tempo.
Promessa cumprida a cada amanhecer. Latidos de amor e esperança que despertavam a casa inteira. Hoje, quando nosso sino dos ventos canta, sei que são eles brincando entre as dimensões, saudando seus humanos eternamente amados.
Neste dia sagrado, não precisamos de altares ou cerimônias elaboradas. O ritual acontece na simplicidade do coração que se abre:
Quando paramos diante da tigela de água que ainda guardamos,
Quando nossos dedos acariciam o ar onde eles costumavam estar,
Quando sussurramos seus nomes como mantras de saudade,
Quando sentimos aquela presença familiar e não a questionamos,
Eles estão aqui. Não como fantasmas, mas como essências puras de amor despidas da dor, livres das limitações do corpo, mas carregando intacta toda a devoção que um dia nos ofereceram sem reservas.
Os animais nos ensinam uma linguagem sem palavras: a comunicação do coração puro. Eles nos amam sem julgamentos, sem condições, sem a complexidade neurótica que nós, humanos, frequentemente trazemos aos relacionamentos. O presente da presença eterna.
Hoje, não choramos a ausência, celebramos a presença eterna.
Porque quem ama de verdade nunca parte completamente. Fica na forma como olhamos o mundo com mais compaixão, na maneira como estendemos a mão para outros seres vulneráveis, no jeito como nosso coração se expande para acolher novos amores.
Eles nos visitam não para nos entristecer, mas para nos lembrar: o amor que compartilhamos é real, transformador, eterno. E neste dia especial, quando o véu entre os mundos se desfaz, eles sussurram em nossos ouvidos a verdade mais bela de todas:
"Nunca nos separamos realmente.
Apenas mudamos de forma.
Continuamos amando vocês de um lugar onde o amor é infinito."
Que hoje seja um dia de gratidão, de presença, de amor sem fronteiras.
Sintamos, sem medo, a visita suave dessas almas queridas, e honrá-las vivendo com a mesma pureza e intensidade com que elas nos amam.
Em memória eterna de todos os companheiros de alma que nos escolheram como família.
Jacinto, Jussara, Juliana, não são a minha vida inteira, mas com certeza a melhor parte dela.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Mais uma, menos um.

Adriana,
faz tempo que nossos caminhos não se cruzam, mas o afeto não conhece distância. Você é daquelas cuja luz não se apaga, dessas que estão guardadas na pele da memória, acesa num canto bonito do coração.  
A sua vida foi boa e generosa: feita de risos compartilhados, de boas companhias, de parentes e amigos que te cercaram com presença e calor. Você fez do mundo um lugar mais leve, e isso ninguém te tira e, agradecemos muito.
Agora, o passo muda, o bem que você plantou continua trabalhando em silêncio, alargando o horizonte de quem te ama. Sustentando a paz mansa de quem cumpriu o que veio cumprir e a alegria serena de permanecer em tudo aquilo em que se envolveu.  
Obrigado por ser farol, por ensinar delicadeza mesmo nos dias difíceis, sei bem como isso não é fácil.  
Esteja onde caibam a sua leveza, seus sorrisos, sua doçura.
Aqui, a saudade te guarda; lá, que a claridade te abrace.  
Com carinho e gratidão,
Clovis e Lila